_______________________________________
REPORTAGEM
______________________________________
Por: Silvino L. Évora
Cabeça carreira, Santa Catarina. Lágrimas miudinhas respingam sobre o telhado da Igreja de Santa Catarina. É domingo, 27 de dezembro do ano da pandemia do novo coronavírus. No mesmo dia, na mesma hora, na sede do Município: Assomada. Lágrimas gotejam sobre a Igreja de Nossa Senhora de Fátima. O ponteiro do relógio já ultrapassou a barreira das dez horas e trinta minutos. As Santas choram. Um filho partiu. A cidade de Assomada está com um aspecto escuro, prenha de amargura. A tristeza anda-lhe pelas ruas plantada no rosto de cada um dos seus filhos. Expande-se pelo interior dos interiores de Santa Catarina, que ressentem a dor dos Engenhos, Travessa de Baixo, a localidade do Concelho que deu às Santas do Município um homem. Não poucas vezes, por estas bandas, as pessoas comentam a respeito de Beto Alves: “Santa Catarina já encontrou o seu marido”. Esquecem-se de Nossa Senhora de Fátima, ali perto, paredes-meias com a Câmara Municipal. O transtorno dos santa-catarinenses é transportado na cara, ao descoberto... nos rostos fechados dos munícipes, com máscaras, sem máscaras, com a cara destapada, sem sorriso no rosto. Sim. Sem sorriso no rosto. Sempre. Sem sorriso no rosto. Hoje, sem sorriso no rosto. Nem o tempo está para sorrisos. A natureza se ressente. A tristeza penetra o âmago dos seres.
À frente da Câmara Municipal de Santa Catarina, a praça central de Assomada está apinhada de gente. Debaixo de uma tenda gigante, mais de cem pessoas a fugir de um sol que também foge de toda a gente. As vestes do céu são as nuvens. Um tempo nublado, que maltrata ainda mais a dor que se sente. Dentro da praça, na rua pedonal, na rua da Igreja, amontoado de gente. Largas centenas de almas. A melodia dos choros eclodem de todos os cantos. Os rostos humanos, às centenas, apenas espelham choros. Choros de boca aberta, choros de boca fechada, choros apenas com os olhos, choros apenas com a alma... pessoas que choram... lembranças que choram... sentimentos que choram... dores que choram... angústias que choram... e a mãe-Natureza, literalmente, chora. Pequenos chuviscos afagam as caras angustiadas. Mais de meia hora se passou. Intensifica-se o choro na Praça Central de Assomada. Quatro homens vestidos de preto como o zorro, acompanhados de mais três com a mesma apresentação, saem de dentro da Câmara Municipal de Santa Catarina. Asseguram o caixão, transportando-o para o seio dos munícipes ali na praça. A mesma praça que Beto Alves, enquanto Presidente da Câmara Municipal, beneficiou com obras de melhorias substanciais e transformou-a num auditório a céu aberto, um palco de eventos para os santa-catarinenses. Lá dentro do caixão, o corpo de Beto Alves faz-se transportar. O corpo do Presidente da Câmara Municipal de Santa Catarina vai-se a enterrar. O corpo de Beto Alves vai. Fica o Presidente. Este permanece porque ser Presidente não é uma condição física. O Presidente é todo o património social, cultural, económico, político, humano, ético e histórico que alguém constrói quando assume tal responsabilidade. Por isso, Beto Alves tem o condão de ser aquele Presidente que nunca Santa Catarina irá, dele, se esquecer.
Durante a manhã, mais concretamente a partir das 10 horas, o corpo de Beto Alves esteve no Salão Nobre dos Paços do Concelho para o velório. Ainda assim, nem todos puderam chegar perto dele porque a azáfama era tanta. A chuva que volta a cair agora que passa das 11 horas da manhã de forma tão ténue que parece a morte apenas anuncia que o Presidente está corpo a corpo com a cidade: o caixão sai para fora de uma Câmara Municipal que José Alves Fernandes presidiu por mais de quatro anos. É colocado em frente a um pequeno palco, com um púlpito. É colocado diante de uma massa humana. Personalidades especiais: muitas. A começar, mãe e pai de Beto Alves. A mulher a quem ele jurou amor eterno: Maria de Jesus. Os filhos que adoçaram a sua caminhada pela vida. Mas, mais: irmãos, amigos, colegas de trabalho, munícipes. Amigos do seu partido. Simpatizantes do seu MpD. Os seus adversários políticos do PAICV. Os que não têm militância partidária... e Ulisses... o Correia e Silva: o homem que lhe confiou a oportunidade de disputar duas eleições pelo partido que preside. Ulisses... sentado na primeira fila. Atento. Olhando para todos os lados... sobretudo quando a disrupção da dor é tanta e alguém cai no chão, exigindo a intervenção dos bombeiros.
Com Ulisses Correia e Silva, não se fechou o cerco às personalidades presentes. Outros, também, ali estiveram. Francisco Tavares... o presidente que lhe precedeu e que lhe ajudou a desenhar o caminho para chegar ao seu primeiro mandato. Austelino Correia... deputado nacional e vice-presidente da Assembleia Nacional... Austelino Correia... o mesmo... aquele que o abraçou no curso do primeiro mandato e o ajudou a chegar ao segundo mandato... contra-forças... a contra-gosto de muitos, mesmo dentro do seu querido MpD. Contra ventos e marés.
Muitos que, hoje, enaltecem a sua capacidade de diálogo, na época de escolha do candidato para as autárquicas, diziam que ele não tinha diálogo e que não era a pessoa ideal para se candidatar. Assim se faz a política. E assim a morte faz da política um autêntico reino de contradições. Porém, é como tudo na vida. A morte, ao que tudo indica, melhora a condição humana das pessoas. E a ternura brota de todas as entranhas.
Honra a Beto Alves – a Homenagem
A homenagem a Beto Alves começou com a mestre de cerimónias a ler-lhe a carta... literalmente. Falou do seu percurso académico, do seu percurso pessoal, do seu percurso político, do seu percurso como chefe de família, do seu percurso como um homem que trocou a possibilidade de conseguir um passaporte português com o regresso ao país a um ano de completar o tempo legal para adquirir a nacionalidade portuguesa porque queria vir abraçar a sua Maria de Jesus, o seu amor de infância, que tinha deixado na terra a cuidar dos seus filhos. Falou-se, também, do seu percurso como marido, como pai, como pessoa, como humano, como afável, como alguém de sorriso manso, como um homem de palavras certas. Beto Alves deixou, em Santa Catarina de Santiago, almas risíveis.
Jassira Monteiro também foi ao púlpito.
A única mulher actualmente Presidente da Câmara Municipal em Cabo Verde, Jassira Monteiro é, na hora de tecer a dor para falar de Beto Alves, uma mulher em reconstrução. “Honra a Beto Alves”: assim viria a terminar o seu curto discurso, com um braço estendido para cima e empunhado. Jassira Monteiro mostra que será obrigada a ser, a partir de agora e mais do que sempre, uma ‘mulher de armas’. Todas as ‘rajadas da política’ que caíam sobre Beto Alves têm-na agora como o alvo. Desse rio, ela não sairá alva porque terá que lutar com jacarés. Nesse oceano, ela – mais do que nunca – vai enfrentar tubarões. De dentro e de fora. Uns, sem dó nem piedade. Até porque quem lidera paga pelos seus ‘pecados’ e paga por ‘pecados’ alheios. Jassira é peremptória: “Beto Alves não conhecia a palavra cansaço quando o assunto era Santa Catarina”. Talvez seja um pouco por isso que, no seu discurso, a atual Presidente da Câmara Municipal de Santa Catarina defende que uma grande responsabilidade caiu-lhe sobre a cabeça... ‘sobre os meus ombros’ – diz ela. “Sobre os ombros de todos nós”: Jassira Monteiro reparte, assim, o peso da responsabilidade com os demais santa-catarinenses.
Quando tudo falha... ou quando tudo estiver na eminência de falhar, o homem acorda Deus para o socorrer... como se Deus dormisse! Eurico da Moura, Presidente da Assembleia Municipal de Santa Catarina de Santiago e que ia no seu segundo mandato ao lado de Beto Alves (agora terá que prosseguir com a Jassira Monteiro), é, hoje, meio homem, meio político, meia dor, meio sofrimento.
Estruturalmente emotivo, cúmplice no discurso e, por vezes, engasga-se com as palavras porque, quando a dor é tanta, também sai pela boca. Eurico da Moura adianta o trabalho do Padre Adérito. Roga a Deus para que Beto Alves tenha uma boa recepção na casa do Senhor. “Que Deus dal um sombra fresco pé descansa pamodi é mereci”, comenta uma mulher na Praça Central de Assomada, enquanto Eurico da Moura discursa. Os dois cruzaram o pensamento no caminho do Céu.
Beto Alves perdeu a vida ‘de forma trágica’, diz Eurico da Moura. Recorda. Ou, quando muito, sublinha. O Presidente da Assembleia Municipal estende o seu abraço de solidariedade à família de Beto Alves, a quem envia votos de conforto e de pesar. Para ele, com o desaparecimento físico do seu colega ‘de chapa’ pelo MpD nas eleições autárquicas, o Município saiu empobrecido. Eurico da Moura também empobrece com a morte de Beto Alves. Perde um amigo e sabe que jamais irá tê-lo com ele no paralelo das listas autárquicas: Câmara Municipal – Beto Alves | Assembleia Municipal – Eurico da Moura. Isso acabou. Passa para o reino das recordações.
Eurico da Moura é, hoje, um homem destroçado. Quando deixa o púlpito para ir ocupar o seu lugar, arrasta os passos de forma lenta que parece que os pés não querem andar. Não é todos os dias que se sepulta um grande amigo. E ainda bem que assim o é. De outra forma, não haveria lugares no peito com dimensão suficiente para suportar tanta dor.
O último a falar é Ulisses Correia e Silva. Meio cerebral, meio emotivo. Cara fechada. Faz diferente da Mestre de Cerimónia.
As pessoas que o Primeiro-Ministro ressalva como as mais destacadas neste acto são a esposa Maria de Jesus, a mulher que conseguiu agarrar o coração de Beto Alves com toda a sua dialéctica emotiva, e as filhas que se encontram presentes. Para a mestre de cerimónia, que abriu as ‘hostilidades’ em termos de discurso, as personalidades mais importantes, a quem ela se dirigiu directamente, são os pais de Beto Alves, que permitiram partilhar com Santa Catarina a habilidade de um filho que trouxeram ao mundo. Ulisses Correia e Silva chama Maria de Jesus pelo seu nome.
O discurso do Primeiro-Ministro é curto. Por isso, entre o emotivo e o cerebral. Porém, o chefe do executivo não deixa de reconhecer, no seu discurso, o desempenho de José Alves Fernandes, salientando que ele esteve à altura dos desafios do Município. “Beto Alves foi um bom Presidente”, disse-o o chefe do Governo umas três vezes. Provavelmente, José Alves Fernandes não pensasse diferente. No auge do seu primeiro mandato, Beto Alves comunicava para os seus eleitores, para os seus munícipes, para a região, para a ilha e para todo o país: “Santa Catarina – a marcar o compasso em Santiago Norte”. Esse praticamente passou a ser o chavão de comunicação do Município nas redes, depois de Beto Alves ter beneficiado o centro de Assomada com obras estruturantes, que mudaram o rosto do Município e deram-lhe uma nova feição. Nesse momento, parecia que Santa Catarina e Beto Alves estavam numa guerra de protagonismo contra São Miguel e Herménio Fernandes. Eram os municípios com mais visibilidade em Santiago Norte, com uma comunicação enérgica e uma vontade de conquistar espaço na região.
José Alves Fernandes, o Estudante que Abraça os seus Amigos
Nasceu na localidade de Travessa de Baixo, na zona dos Engenhos, mas morreu como Presidente. Beto Alves era um homem simples. Estudou no Liceu de Santa Catarina. Não no Liceu Amílcar Cabral. O nome do herói da liberdade da pátria só veio a ser coligido àquele estabelecimento de ensino anos depois de José Alves Fernandes ter passado por ali. Depois de concluir os estudos secundários, José Alves Fernandes regressa ao mesmo estabelecimento de ensino onde estudou para ir leccionar. Foi professor de Introdução ao Direito. Nessa altura, era comum as pessoas acabarem o Liceu e terem a possibilidade de leccionar nos sistemas de ensino básico e secundário. O país andava apeado em termos de quadros. Por isso, tal como Beto Alves, muitos jovens do seu tempo tiveram essa oportunidade de desenvolver uma experiência como professor. Seguidamente, Beto Alves rumou a Lisboa... saiu dos Engenhos, a terra cabo-verdiana com grande produção de alface, para ir para Lisboa, a terra alfacinha de Portugal. Beto Alves viveu todos os Portugais que ali encontrou: o Portugal de Estudar na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias e concluir a sua Licenciatura em Ciência Política, seguida de uma Pós-graduação em Direito Autárquico; o Portugal do duro trabalho nas obras para sustentar os seus sonhos e ajudar a família que lhe ficou para trás; o Portugal dos amigos que encontrou e conseguiu fazer por Lisboa; o Portugal dos amigos que tinha espalhado por terra de Camões e que ia visitar. Por Coimbra, a cidade dos estudantes, Beto Alves passou algumas vezes em busca de abraçar os seus amigos que ali estudavam.
Funeral: As ‘Honras de Estado’
Um funeral assim não acontece todos os dias. É natural que quando uma pessoa é conduzida no caminho sem volta para o seu eterno descanso, tenha companhias. Amigos, familiares, vizinhos, pessoas com quem viveu e conviveu. Porém, poucas vezes coincide tanta ilustricidade num único momento desses. O funeral de Beto Alves esteve à altura do que se poderia esperar de alguém que serviu o estado: com a grandeza que merece. Presente no acto esteve o Presidente da República, Jorge Carlos Fonseca, o símbolo máximo da identidade organizacional da República. Presente esteve também o Primeiro-Ministro. E mais: o vice-Primeiro-Ministro. Os Ministros... vários deles. Os Presidentes de Câmara Municipal... vários. Os Presidentes de Assembleias Municipais... vários. Os Deputados nacionais... muitos. Uma grande massa da população que lhe emprestou o coração para sangrar a dor. Beto Alves, de humilde criança de Travessa de Baixo, terminou o seu percurso de vida como um homem que conquistou o seu espaço no país.
A estrada de Nhagar, em Assomada, hoje é pequena para tanta movimentação. Há quatro pontos, em Santa Catarina, que absorvem o circuito dos trânsitos e das deslocações: a casa de Beto Alves, em Achada Riba; a Câmara Municipal de Santa Catarina; a Igreja de Nossa Senhora de Fátima; e o Cemitério de Nhagar. Figuras ilustres fazem esse percurso, no meio de um batalhão de homens e mulheres que assumem a dianteira e a traseira do pelotão para acompanharem o corpo do Presidente até à sua última morada. As cerimónias religiosas aconteceram na Igreja de Nossa Senhora de Fátima. Uma missa com o corpo presente, celebrada pelo Padre Adérito Rodrigues, bastante tocado pela situação.
Uma banda musical também deu o seu contributo, no sentido de conferir mais dignidade à partida de um homem que morreu enquanto ainda exercia o cargo de Presidente da Câmara Municipal neste país.
Beto Alves, Repousa em Paz
No cemitério de Nhagar, cerca de 12 agentes da Polícia chegam meia hora antes da chegada da caravana fúnebre. Uma senhora mostra-lhes a sepultura e explica-lhes o processo. O chefe da equipa de terreno da Polícia de Ordem Pública começa a dar indicações aos seus homens: a colocação de cada elemento, a ação e o posicionamento; as tarefas; o que deve ser permitido. O que se deve evitar. A abordagem.
Quando a caravana fúnebre chega ao cemitério, algumas pessoas já estavam lá dentro. Os que ainda não tinham entrado ficaram de fora até que entrassem as autoridades. Chegaram uns sete minutos depois de o corpo ter chegado ao lugar de repouso. Ulisses Correia e Silva, Jorge Carlos Fonseca, Fernando Elísio Freire... mas, também, Presidentes de Câmaras Municipais, ex-Presidentes de Câmaras Municipais. Deputados Nacionais. Rui Semedo, líder da bancada do PAICV. Guarda-costas do Presidente da República e do Primeiro-Ministro. E mais... e mais... e mais.
Depois destes terem feito a sua visita à sepultura, começou-se, novamente, a permitir que as pessoas permeassem o cemitério. Ainda assim, no momento em que a entrada estava vedada, um grupo de cerca de 30 pessoas entraram, não pela porta, mas assaltando a parede do cemitério na sua parte direita, onde o solo exterior é quase rente à parede. Só não entraram mais pessoas por esse ‘caminho’ devido à chamada de atenção das autoridades policiais no local, que procuravam pôr a ordem à situação.
Beto Alves foi repousar no lado esquerdo do cemitério de Nhagar, no lado do coração, não muito distante da porta de entrada. Entre o seu túmulo e o do ex-Presidente da República, António Mascarenhas Monteiro, apenas há um túmulo no meio a separar. O seu caixão não é descido literalmente à terra, mas a campa é um buraco no chão, com as quatro paredes levantadas e caiadas e o chão cimentado. Ali coloca-se o caixão com o corpo a repousar. Algumas mãos de terra são deitadas para o buraco. Por fim, ele é tapado com tampões de betão, que ficam sobre ferros firmes, para lhes ajudar com o peso. Tudo indica que aquele espaço será comprado pela família, onde se levantará ali um túmulo com uma outra configuração, que será o memorial de Beto Alves, onde os santa-catarinenses poderão ir recordar o seu Presidente.
Enquanto o caixão desce para o fundo do túmulo, o céu lacrimeja. Uma chuva miudinha vai caindo. Beto Alves parte. Desce para a mansão dos mortos. Fica o Presidente: a obra e o legado.
---------------------------------------------------------------------------------
SLE/Diário de Negócios | Cabo Verde - Palmarejo Grande | 2020
FOTOS: CMSCS.
Este endereço de email está protegido contra piratas. Necessita ativar o JavaScript para o visualizar.