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REPORTAGEM
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Por: Silvino L. Évora
Nasceu em Santa Catarina. A ilha é a de Santiago. Pertence à região norte. Mas, a parte norte da região a que o seu município ocupa está no centro da ilha, onde o micro-clima herda das montanhas do interior um fresco que lhe é especial. A naturalidade santa-catarinense, os pais que lhe deram a luz do mundo e o berço crioulo sufragaram-lhe a nacionalidade cabo-verdiana. Estudou o básico e o secundário na ilha. Terminou o Liceu e seguiu-se para a ‘metrópele’, o destino da mulher crioula de hoje em dia... não o destino daquela mulher crioula de décadas atrás que ficava na terra a cuidar dos filhos, da casa, dos lugares de colheita e dos animais, contando que o marido emigrado lhe mandasse apoio material para ajudar a ‘carregar’ a família nas costas, mas, sim, daquela mulher crioula cabo-verdiana badia que foi criada pela outra mulher que viveu umas décadas antes. Ela é a mulher badia, que é cabo-verdiana e crioula, e teve oportunidades. Saiu pelos seus próprios pés à procura do futuro. Foi para Portugal. Em Portugal, descobriu Lisboa. Em Lisboa, encontrou Universidade. Chegado ao Ensino Superior, abraçou a Universidade Autónoma. Não a de Barcelona, em Espanha. A de Lisboa mesmo... a cidade alfacinha. Entrou na Universidade com um certificado de 12º ano. Saiu de lá com um diploma de Licenciatura: Tradução e Interpretação – o curso que lhe ocupou os anos de estudos superiores.
Em Portugal, não ficou pelos estudos. Rasgou o tecido social de Lisboa e entrou naquela que, à época, era conhecida como Alto Comissariado para as Migrações e Minorias Étnicas (ACIME). Viu a organização portuguesa de apoio à integração dos imigrantes na pátria lusa desaparecer e seguiu os seus passos. E cumpriu, novamente, outro destino crioulo “si ca badu, ca ta birado”, de Eugénio de Paula Tavares... da ilha de Brava... de todo o cabo-verdiano. Regressou à terra e começou a trabalhar aqui, junto dos seus. Começou como ‘Comercial Corporate’ na Unitel Tmais. Em 2016, elegeu-se Vereadora da Câmara Municipal de Santa Catarina de Santiago, pela lista do MpD. Entre 2016 e 2020, foi vereadora do Pelouro de Cultura, Género e Comunicação. Em outubro de 2020, foi reeleita vereadora. Hoje é Presidente da Câmara Municipal de Santa Catarina de Santiago. Jassira Monteiro é, actualmente, a única mulher a liderar um órgão camarário de uma autarquia em Cabo Verde e tem, sobre os seus ombros, o destino de, por um lado, liderar o processo de transformação do município e, por outro – mas, também, coligido à primeira responsabilidade –, continuar o legado de Beto Alves.
Quando, em 2016, Beto Alves convidou-lhe para integrar a sua lista para Santa Catarina, Jassira Monteiro não sonhava que, em Dezembro de 2020, tornar-se-ia Presidente daquela autarquia. Nem sequer era a segunda da lista, para entender que seria uma candidata ‘nata’ a vice-presidente da Câmara Municipal. Os caminhos foram-se costurando e a política foi seguindo a sua dinâmica, no Município de Santa Catarina de Santiago, juntando conjunções e disjunções. Conflitos internos ganharam faces visíveis. Beto Alves, pelo caminho, perdeu o seu segundo homem. Aquele que era o segundo da lista e o então presidente desalinharam-se. Desencontraram-se. A paixão esfriou. Os olhares já não eram os mesmos. A cumplicidade ruiu. Cada um seguiu o seu destino. Cada um para o seu sítio. Um vereador da mesma Câmara Municipal, que tal como Beto Alves nasceu nos Engenhos, assumiu o lugar de o ‘homem do Presidente’ ou ‘o homem forte da Câmara Municipal’ depois do Presidente... outras vezes, ao lado de Beto Alves. Santa Catarina, como vários outros municípios onde o MpD tinha ganho as eleições em 2016, vivenciou combates intestinais entre as diferentes fações do partido, que, localmente, começaram a disputar território. E a política seguiu os seus passos mais rudes. Com avanços e recuos. Jassira Monteiro, serena, foi ganhando o seu espaço na Câmara Municipal. Quando, em 2020, Beto Alves, por força da lei, suspendeu o mandato num prazo de cerca de 60 dias antes das eleições, escolheu Jassira Monteiro para o substituir na função de Presidente da Câmara Municipal. Aquela escolha não foi inocente. Traduzia o espaço que Jassira Monteiro já tinha conquistado dentro da ‘Administração Beto Alves’. Por isso, depois dessa primeira escolha, seguiu-se uma segunda escolha: Jassira Monteiro é o segundo elemento na lista do MpD e de Beto Alves para a Câmara Municipal de Santa Catarina de Santiago, nas eleições autárquicas de 2020. Acto contínuo, seguiu-se a terceira escolha: Jassira Monteiro é eleita vereadora, segunda pessoa na lista mais votada, em posição de assumir o lugar de vice-presidente da Câmara Municipal. Por fim, a quarta escolha... a escolha do destino: Beto Alves morreu e Jassira Monteiro assume a Presidência da Câmara Municipal.
Muitos factores concorreram para a rápida ascensão de Jassira Monteiro na pirâmide da política local em Santiago Norte: o lugar de confiança que tinha conquistado no seio da ‘Administração Beto Alves’; a experimentação de ter assegurado a Câmara Municipal – exercendo a função de presidente em substituição –, no interregno feito pelo então edil para liderar a lista do MpD em 2020; a ‘Lei Zebra’, um diploma aprovado em sede do Parlamento cabo-verdiano, que estabelece um regime de paridade entre homens e mulheres no acesso a cargos públicos. Jassira Monteiro tinha, até ali, o vento leste do deserto do sahara a correr-lhe a favor. Seguiu a direção do vento e levantou voo. A velocidade cruzeiro chegou pelas piores razões: Beto Alves morreu a 24 de Dezembro de 2020. Alguém tinha que assumir os destinos do Município. Jassira estava ali. A carga caiu-lhe sobre os ombros. Hoje, é a única mulher a tentar colocar qualquer coisa de ‘zebra’ na perfilação das pessoas que assumem a presidência das Câmaras Municipais no país: 21 homens e Jassira. Ela ali... no meio deles. Com a sua pele de tez escura. Estruturalmente vertebrada. E uma mulher vertical.
Este cenário confirma, uma entre tantas outras vezes, que Cabo Verde é um país que tem muitas dificuldades na cultura de ‘zebras’, a não ser na intenção do legislador. Tanto o PAICV como o MpD suportaram a lei da equidade de género. Porém, nenhum deles teve a coragem de escolher uma mulher para encabeçar uma lista para uma Câmara Municipal. A UCID, outro partido como assento no Parlamento e que apoiou ‘a lei zebra’, ensaiou a dança com Neida Rompão, em Santa Catarina de Santiago. Logo, no Município em que Beto Alves ganhou as eleições para, em cerca de dois meses, deixar a Câmara Municipal para uma única mulher Presidente de uma Câmara Municipal neste país de mar, sol e saudades: Jassira Monteiro. Neida Rompão ficou-lhe pelo caminho. A UCID, partido com o qual Neida Rompão se lançou ao desafio, tem uma fraquíssima implementação em Santiago. O seu espaço de ação política de maior relevo é o Norte do País. Assomada é o Norte da ilha de Jassira. Fica no centro. Depende das métricas... e das suas contradições.
Jassira Monteiro, a Única Mulher Presidente de Câmara Municipal
Jassira Monteiro teve que assumir a Câmara Municipal, imediatamente, quando se soube que o então Presidente da Câmara Municipal, Beto Alves, estava hospitalizado e que a situação inspiraria muito cuidado. Num primeiro momento, sem todos os elementos sobre as possibilidades de evolução do quadro clínico do então presidente, a lei daria à Jassira Monteiro a possibilidade de assegurar a Câmara Municipal até que o então presidente recuperasse a sua saúde e voltasse às funções. Aí, Jassira teria que deixar o espaço a Beto Alves e continuar como vereadora. Porém, o desfecho foi outro. Beto Alves não resistiu às lesões e foi-se a enterrar no passado domingo. Jassira, nesse dia, teve a noção exacta do tamanho da responsabilidade que terá que transportar sobre o seu dorso: Santa Catarina é um município e tanto e tem um papel de ‘player’ dentro da sua região política, a de Santiago Norte.
Jassira: de Presidente Substituta a Presidente Efectiva
No final de Agosto passado, Jassira Monteiro – na altura Vereadora da Cultura, Género, Comunicação e Imagem da Câmara Municipal de Santa Catarina de Santiago, foi escolhida para assumir a Câmara Municipal, enquanto José Alves Fernandes (Beto Alves) cumpria um imperativo legal, que o obrigava a afastar-se das lides da gestão camarária para se poder recandidatar à sua própria sucessão. Jassira Monteiro cumpriu as suas responsabilidades dentro da normalidade, tendo marcado um tempo importante na vida da Câmara Municipal de Santa Catarina de Santiago, por ser a primeira mulher a assumir aquela edilidade. Assumiu as responsabilidades entre finais de Outubro e meados de Novembro, quando a nova equipa da Câmara Municipal – novamente liderada por Beto Alves – foi instituída nas suas funções.
Com a situação clínica de Beto Alves – que se encontrava a convalescer no Hospital Agostinho Neto, na Cidade da Praia, com um quadro clínico muito reservado –, ordenava a lei que alguém teria de o substituir, novamente, nas suas funções de Presidente da Câmara Municipal, uma vez que a autarquia teria que continuar a funcionar, a assumir as suas responsabilidades. Sempre haveriam documentos a assinar e assuntos a serem despachados. Por isso, a lei permite a possibilidade de substituição do presidente em diferentes circunstâncias da sua ausência.
O artigo 96º do Estatuto dos Municípios de Cabo Verde trata deste assunto, em particular. Logo no seu primeiro ponto, o artigo abre uma numeração, o nº 1, com uma perspectiva geral, estabelecendo que “o Presidente da Câmara Municipal é substituído, nas suas faltas e impedimentos, por um dos Vereadores por ele designado”. Nesta matéria, a lei é bem clara: só pode substituir o Presidente um vareador ou uma vereadora e ele ou ela terá que estar em regime de permanência. Também, a lei define que terá que ser um vereador ou uma vereadora eleito/a pela lista na qual o Presidente foi eleito, ou seja, a lista vencedora. Com isso, o legislador procura assegurar que o partido que vencer as eleições continue a assegurar a Câmara Municipal, em qualquer circunstância, até que haja novas eleições, sejam elas intercalares, sejam elas regulares.
No caso de uma ausência programada do Presidente da Câmara Municipal, este tem a prorrogativa de escolher qual vereador irá substituí-lo, independentemente da sua posição na lista. Isso significa que um vereador, ainda que seja o último a ser colocado, desde que seja eleito na lista vencedora, esteja em regime de permanência e seja escolhido pelo Presidente da Câmara Municipal para o substituir na sua ausência, ele assumirá as funções de Presidente, legalmente, quando este não se encontra.
No caso de ausências não programadas (em que não há um vereador escolhido como substituto do Presidente nas suas ausências) ou mesmo que seja programada e não houver uma definição de quem substitui o presidente (esta segunda hipótese é pouco provável, na medida em que, quando um presidente programa a sua ausência, por regra define o vereador que o substitui, informando-lhe dos ‘dossiers’ urgentes e das pendências a resolver), a lei define quem substitui o Presidente. Neste caso, o substituto do Presidente é o segundo da lista na qual o Presidente foi eleito, portanto, a lista vencedora das eleições. Esta prerrogativa está plasmada no número 3, do Artigo 96º do Estatuto dos Municípios, que estabelece que, “na falta de designação a substituição caberá ao segundo membro da lista de candidatura do Presidente e assim sucessivamente”. Se não houve nenhuma designação de que Vereador iria substituir Beto Alves nas suas ausências, é este nº 3 do Artigo 96º que passou à aplicação, empurrando imediatamente a número 2 da lista do MpD, neste caso Jassira Monteiro, para a presidência da Câmara Municipal de Santa Catarina (Santiago). Ou então, Beto Alves já a teria escolhido como a sua sucessora nas suas ausências. Neste caso, Jassira Monteiro, que começou por assumir a Câmara Municipal num regime transitório até que Beto Alves se recuperasse, com a morte do então presidente, passou a presidente efectiva da Câmara Municipal.
Os próximos tempos serão exigentes para ela. Santa Catarina, com a sua cidade de Assomada no coração da ilha maior, é um município com grande expressividade, não só a nível político, como também, a nível económico. Por esta altura, Jassira Monteiro é obrigada a banir, da sua estrutura psicológica, a eterna questão cuja resposta ainda ninguém descobriu: “Somada, quenha qui dabu és castigo? Tê-lo-á que fazer e recuperar, na ilha de Santiago, a mística que outrora Isaura Gomes cultivou em São Vicente, marcando um tempo na política cabo-verdiana, mas, também, um espaço na memória colectiva deste país.
Morte de Beto Alves
José Alves Fernandes, mais conhecido por Beto Alves, morreu a 24 de dezembro no Hospital Agostinho Neto, na Cidade da Praia, onde se encontrava hospitalizado, com um forte acompanhamento médico. Ainda assim, não conseguiu resistir aos ferimentos e acabou por perder a vida. Os ferimentos... estes, foram-lhe provocados por uma bala de uma arma que, segundo fontes policiais bem posicionadas (e que, por cláusula de confidência profissional, não as identificamos), se trata de um Walther 7.65 milímetros. Os médicos, segundo uma outra fonte nossa bem próxima de Beto Alves, fizeram um esforço no sentido de tentarem salvar-lhe a vida, mas isso não foi possível. Esta segunda fonte informou-nos ainda que, depois de ter sido atingido pela bala, Beto Alves ficou com uma paralisia cerebral, causada pela lesão e, com isso, o quadro clínico não foi possível de ser revertido. Por esta altura, a Polícia Judiciária já terá mais elementos do que aqueles que o comum dos cidadãos têm. Terá já acesso ao projétil que ficou alojado no cérebro do então Presidente de Santa Catarina e saber, exactamente, se a bala encontrada no seu corpo saiu mesmo da arma encontrada no local. As provas balísticas dar-lhe-ão essa certeza. A arma, conforme foi apurada pela redação do Jornal Arquipélago e do Diário de Negócios – aquela que foi encontrada perto do corpo de Beto Alves –, pertence mesmo ao presidente. Esta confirmação foi conseguida junto de fontes policiais. A tese que a polícia científica cabo-verdiana abraçou, na primeira hora, é a de que o que sucedeu terá sido um acto de tentativa de suicídio, que, depois, acabaria por se efectivar em morte. Para isso, contou sobretudo a estrutura do impacto, a arma encontrada no local e outros factores não colocados, ao conhecimento do público. Em Santa Catarina, sem outra pista de investigação à vista, as pessoas já se colocam entre a tese da Polícia Judiciária e a tese de uma dúvida funda. Muitos, mesmo os amigos mais próximos, não conseguem ventilar razões que pudessem ter levado Beto Alves a praticar um acto de tentativa de suicídio. As hipóteses continuam sobre a mesa. Todas elas. E são muitas. No país inteiro, não são todos que abraçam a tese da Polícia Judiciária de forma inquestionável. Assim como a tese de suicídio foi avançada pela polícia científica cabo-verdiana na primeira hora, também muito cedo houve análises que, inclusive, apontaram a comunicação da polícia como precipitada. Uma delas foi feita na página da Câmara Municipal de Santa Catarina de Santiago, pela sua estrutura de suporte; outra partiu do advogado Maika Lobo que usou a sua página no Facebook para questionar a pressa com que a Judiciária avançou com a comunicação; ainda destacamos uma terceira contra-tese que foi avançada pelo criminalista João Santos, professor no Instituto de Ciências Jurídicas e Sociais, que questionou, ainda antes da morte do presidente, como é que se sabia que o projétil alojado no crânio do então presidente tinha saído da arma do presidente, se até aquele momento ainda ninguém tinha tido contacto com o mesmo, para fazer uma análise mais pormenorizada. A Polícia Judiciária recuou-se na comunicação sobre o caso. Trancou as portas. E mais informações sobre esta matéria não saiu para fora. O caso está em investigação. O desejo dos cabo-verdianos é que não fique coberto com o pano do segredo da investigação judicial e policial, até que caia no esquecimento. É preciso uma investigação cabal e funda sobre este assunto para que a população conheça os meandros da questão, como forma de devolver tranquilidade e paz social às almas desassossegadas... e, assim, para o país continuar a sua vida, esperando que nunca mais morra presidente.
Missa de Sétimo Dia
Hoje, pelas sete da manhã, na Igreja de Nossa Senhora de Fátima, paredes-meias com a Câmara Municipal de Santa Catarina de Santiago, foi celebrada a missa de sétimo dia em honra à alma de Beto Alves. A Igreja estava cheia. Não a mesma multidão do dia do funeral, mas, ainda assim, uma boa presença humana. Praticamente, todos os presentes se trajaram de preto. O luto ainda permanece. As dúvidas continuam infindáveis. Os comentários estão em regime de prolongamento. Os amigos continuam incrédulos. Presentes na missa estavam deputados nacionais pelo círculo de Santiago Norte... do MpD e do PAICV; vereadores da Câmara Municipal de Santa Catarina; e Jassira Monteiro, a mulher que tem a seu cargo, por agora, a vida do Município para, nele, celebrar obras. A missa foi celebrada pelo Padre Adérito, com ajuda de outros membros da Igreja. Terminou 45 minutos depois do seu início. Depois disso, Nhagar: o cemitério. Ali o corpo jaz. E ali as almas aflitas desejam a sua dor... choros... enfim... choros... neste último dia do ano 2020, o ano da pandemia do novo coronavírus.
TEMA RELACIONADO. LEIA OU RELEIA A NOSSA REPORTAGEM SOBRE A MORTE DE BETO ALVES AQUI E ENCONTRE INTERTEXTUALIDADE.
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SLE/Diário de Negócios | Cabo Verde - Palmarejo Grande | 2020
FOTOS: CMSCS, Expresso e Inforpress.
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